29 de agosto de 2016

Preciso dormir vinte anos
e acordar amanhã
desavisada.
Varrer a casa,
ir a feira

Acordar tantas vezes
neste mundo
sem eira, nem beira
onde na verdade
ninguém
cabe

Dormir vinte anos
e acordar amanhã
de cabelo penteado,
roupa passada.
Igual a quem vai ao mercado
e vê o preço das frutas.

Troca a água do aquário.
Cuida do jardim
e nem sabe


Anne Cerqueira
2015

28 de agosto de 2016

Tudo foi feito
para caminhar
menos as árvores
e as pedras
cujo limo
encobre o peso
de ser pedra.
E as árvores.
Mas existem árvores
que se desconhecem
como árvores
e se não andam, caem.
Também não ficam no lugar
porque tudo
tudo mesmo
meu Deus
tudo
foi feito para caminhar.
Anne Cerqueira.
2016

6 de maio de 2016

Procuro o mapa da cidade
abraçada pelo rio
e que hoje se esconde na bruma.
Sei que ela ainda está lá
com suas casas perfiladas
e a face forjada em pedra
e ainda tem o rio
que alinhava tudo.
E os pães cobertos de abelhas
e os trilhos do trem
e os pés molhados
com a água do rio
e seu incontrolável fluxo.
Mas falta a menina
e sua camiseta
cheia de dizeres
incompreensiveis.
Parece que ela sussurra
lá de onde está,
sem piedade de nós:
Meus amigos,
não sei bem como foi,
mas o amor
(rosa desfolhada sem cuidado)
caiu em desuso.


Anne Cerqueira.
maio 2016

23 de abril de 2016

Quase uma prece

Obrigada meu Deus pelo dia de hoje
não de ontem, nem de amanhã, 
mas de hoje que me levanto
e ando pela casa, molho as plantas, 
brinco com o cachorro
e acho que está tudo bem
porque está como sempre.
E tem o sol e tem a chuva, o dia,
a noite, os livros, as certezas sempre
piores do que não te-las.
E a janela de onde vejo os vizinhos
e suas vidas diáfanas e seus amigos
que existem para não deixá-los morrer
sozinhos.
E o jardim e a poesia e meu próximo
que se encharca de vinho e uísque
e dá risada como se tivesse descoberto a
pólvora ou a roda. Sua grande subversão.
A corrente de ouro

A cegueira diária
e tudo mais que nos engana.
Obrigada meu Deus, pois ando pela casa,
molho as plantas e leio um livro.
Subversão é estar vivo.


Anne Cerqueira
Abril 2016

16 de abril de 2016

Na vitrola a música interminável
(Faz tanto tempo de tanta coisa,
meu Deus)
e nós quietos, mudos, magros
sem saber dançar
Anne Cerqueira.
2016

4 de abril de 2016

O homem grita sem ser visto
além das pedras do cemitério antigo.
As montanhas, os vales
o grito que ecoa
sem lugar de partida.
Talvez peça ajuda
para atravessar o rio,
talvez apenas queira um pequeno
assombro...
o sopro dos dias
visco.
Mas quem de fato sabe 
o que quer
o que precisa
o homem que grita
sem ser visto?!

Anne Cerqueira
Abril 2016

25 de fevereiro de 2016

Só os fortes sobrevivem
diziam os mais velhos
e eu
desatenta aos sinais
regava as flores
no quintal imenso
da memória.
O disco na vitrola
o ultimo poema de Bukowsky
o ator que ninguém lembra
o nome
naquele filme de amor
incompreensível.
Só os fortes sobrevivem
diziam as mensagens
nas tardes de aniversário
cinzentas
da nossa infância.
Talvez a gente esqueça
que é preciso polir as pedras
e ainda evitar que elas caiam
silenciosamente
sobre nossas cabeças.
Eu e minhas flores
e o pó das pedras,
paciência.
Anne Cerqueira
Fev. 2016