18 de julho de 2021

 Notas de solidão

Do alto do edifício
penso
ainda
que é preciso salvar o mundo.
Com minhas sandálias rotas,
minhas roupas velhas,
minhas notas de solidão.
É preciso salvar o mundo.
Não da moça e suas falhas
Da criança que sonhava
em um dia andar na lua.
Talvez de mim
madura
ausente
muda
Incapaz de ser diversa, Adélia
tropeço no vento.
Olho pedra mil vezes
e vejo pedra mesmo.

13 de outubro de 2020

 


Deus nunca me abandonou, é verdade!
Penso enquanto dobro os lençóis no quarto antigo
escondido no final do corredor e depois da estante de livros.
Tudo está tão certo quanto o sol lá fora, digo
tentando me convencer do que digo.
Talvez seja difícil deixar de ser quem era,
alguém sussurra a esmo.
Ora, ora. Sigo resmungando com meu umbigo:
Que importa? Já atravessei séculos
e nunca fui o mesmo
(Fecho a janela.)
Está tudo tão certo quanto o sol lá fora.

Anne Cerqueira
Outubro 2020

30 de setembro de 2020

O amor tem tantos braços

e muitos deles me alcançam

nessa tarde longa

em que tranço

meus cabelos ao vento.

Veja, não posso reclamar.

Mesmo que muitos deles não passem

de grandes rios pra singrar sozinho,

pantomimas

paredes. 

Ou talvez seja eu que não reconheça

entre gestos e palavras que me afligem

os braços do amor que me alcançam

e o que eles não dizem.


Anne Cerqueira

Setembro 2020

28 de setembro de 2020



Não há mais alegria na casa
nem cores nos livros que os mais velhos liam pra mim
naquela varanda imensa
da casa imensa
que não é mais essa.
Cheios de palavras antigas - cromo, botica, arminho -
e histórias de dar nó na alma.
A pequena órfã.
A menina dos fósforos: morta de solidão, fome e frio
na véspera de tantos e tantos natais.
Não havia alegria ali também
só a imaginação
ressuscitando a menina sempre e sempre
para que ela se fosse de novo
de solidão, fome, frio
e indiferença.
Também não há mais príncipes nem princesas
nessa casa descoberta e erma
nessa casa que já foi de alguém e hoje não.
Apenas não
e esse silêncio brutal que queima
tudo que ainda teima
entre os vãos.

Anne Cerqueira
Setembro 2020

23 de julho de 2019

Repostando


Apagou do livro todos os personagens.

Não quer a menina descalça
chamando da porta. Nem a moça confusa
imersa no rio. Ou essa ou aquela
em qualquer idade.
Apagou-as todas sem dó, nem burburinho

E foi sentar-se à brisa no final da tarde.

Anne Cerqueira
2008

17 de julho de 2019

E essa brisa?

Penso que o melhor remédio para continuar vivendo
é esquecer.
Quebrar o espelho, seguir como se tudo fosse sempre
novo.
Penso que não sei nada da vida ou de viver
e que esquecer, talvez, seja a própria doença.
Se preciso do poço ou da crença? Não sei. Não sei.
Abro a janela, o quintal pouco ensolarado
não me convida.
Mas estou viva.

E essa brisa???!

Anne Cerqueira
2019

18 de janeiro de 2019

Proa
 
Os rios estão aqui para nos levar
aos lugares que nunca saberemos.
Cheiros, vinhos, veios,
malas onde cabem o esquecimento,
esse fio
avesso da esperança.
Pai, mãe, barcos a vela
(proas
para romper a tormenta)
é preciso retomar a viagem.
Os rios estão aqui
e nada sabem
da distância (silêncio
que corta
a tarde)
encravada nas bagagens.
Anne Cerqueira.
janeiro/2014

26 de agosto de 2017

VIVE!

Desencana meu amor,
Tudo seu é muita dor,
VIVE!

(Djavan)

10 de maio de 2017

Lembro do tempo em que íamos até a praça
talvez um pouco embaraçados, mas vestidos com as melhores roupas, calçados com os melhores calçados. O cabelo penteado com afinco. Não era domingo, não era passeio. Não, não era domingo
era o fotógrafo
e a gente sorrindo, assim, meio sem graça
no três por quatro da vida inteira.
Peço a mãe: Mãe, fica na frente. Mas mãe sai e me olha
com olhar de ternura: menina mais bonita, meu Deus!
No documento da escola.
Na foto da identidade.
Na carteira do grêmio
Mãe, tudo isso era uma mentira. A placa de vidro, a caixa de madeira. E até quem passava. Alheio.
Menos nós duas.
E os três por quatro da vida inteira.
Anne Cerqueira.
2017

20 de fevereiro de 2017

O mundo acaba amanhã
no quintal das nossas casas
as árvores balançam indiferentes
as rochas indiferentes
e o rio
corre em algum lugar. O mundo
acabará de qualquer jeito.
No quintal das nossas casas
as flores sem perfume desses tempos
talvez resistam
ao que trazemos
ou não trazemos
no peito. indefinidamente, o mundo acaba
amanhã.

Anne Cerqueira.
2017

15 de fevereiro de 2017

De que servem os retratos
senão para falar do tempo?
Nós duas meninas
e agora
esse atrapalhar de sapatos
nas pedras.
Essas pedras que cortam os rios
esses rios que nos levam
de volta aos retratos. Paisagem
que ninguém vê, foto Kirlian.
De que servem os retratos
senão pra falar do tempo.
Que dia é hoje?
Amanhã, amanhã
Anne Cerqueira
2016

29 de agosto de 2016

Preciso dormir vinte anos
e acordar amanhã
desavisada.
Varrer a casa,
ir a feira

Acordar tantas vezes
neste mundo
sem eira, nem beira
onde na verdade
ninguém
cabe

Dormir vinte anos
e acordar amanhã
de cabelo penteado,
roupa passada.
Igual a quem vai ao mercado
e vê o preço das frutas.

Troca a água do aquário.
Cuida do jardim
e nem sabe


Anne Cerqueira
2015